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Opinião: Por que o Pedagogo nas Demandas Judiciais?
A relação genuína entre o sujeito adulto e a criança deve ter na palavra o seu maior aliado. (Barudy et al 2000) ao escrever sobre comunicação atribuiu à palavra um valor por demais precioso. Para esse autor, “em uma família sã e altruísta, cada integrante tem como função confirmar a cada um dos demais sua condição humana.” Para ele, a conversa é um dos rituais humanos que regulam os intercâmbios sociais. Se há negação ou falhas no falar há uma importante quebra no sistema que regula as emoções.
O interesse pelo tema, motivo gerador do presente artigo, foi o desdobramento dos trabalhos junto à equipe multidisciplinar na Diretoria Regional de Palmas. A visão adultocêntrica das famílias tem sufocado a voz das crianças como indivíduo que é parte, e não raro a principal, das inúmeras demandas que nos são solicitadas a aproximar, estudar e analisar.
A invisibilidade das crianças, a frágil compreensão dessa fase peculiar e, muitas vezes, a impossibilidade de o adulto que com ela convive ser capaz de percebê-la produz, em quantidade significativa, autoimagem de abandono. Como? Sim, abandono. Faz parte de muitos retornos que recebemos das escolas ao entrevistarmos as equipes pedagógicas e professores que com elas passam a maior parte do dia. A manifestação do fenômeno das indiferenças dentro dos lares recai de forma clara no comportamento e nos resultados escolares.
Quaisquer projetos ou demandas judiciais que envolvam a criança ainda que indiretamente, torna-se incompleto caso seja abafada ou silenciada sua voz. Na criança, encontra-se uma pessoa em fase distinta da do adulto e, por isso mesmo, apresenta necessidades distantes da percepção dos pais ou responsáveis.
É recente o cuidado das instituições jurídicas no sentido de buscar compreender a completude das tramas de um contexto dinâmico, flexível e ocupado por pessoas de diferentes necessidades como a família. Do ponto de vista legal, até a publicação do ECA, a criança não era reconhecida como cidadão, sujeito de direitos, mas como pessoa cujas necessidades deveriam ser representadas por meio da voz do adulto.
Lembro-me claramente de mamãe na minha infância que, totalmente respaldada por papai, ao chegar visitas e adentrarmos a sala antes que nos apresentássemos eu e meus irmãos já ouvíamos: saiam daqui meninos, tem GENTE conversando! Em mim, particularmente, tais atitudes desenvolveram um especial apreço pelo falar, mas (Demartini, et al 2002) em seu processo de pesquisa com crianças ressalta a importância de se olhar “quais as marcas de cada criança, de cada infância e atentar para o fato de que temos as crianças que falam, mas também temos processos de socialização que levam a não-falar.”
Assim, nota-se que mesmo nas sociedades modernas, o espaço da fala da criança é ainda, e de forma recorrente, preenchido pelo silêncio. Nas escolas, persiste o ideal de que o aluno fale quando solicitado pelo professor da mesma forma em muitos lares e em outros espaços em que se desenvolvem as relações sociais.
Nos trabalhos de equipes multidisciplinares que subsidiam as instituições jurídicas com estudos cujas demandas envolvam famílias, torna-se primordial um olhar pedagógico a fim de buscar compreender, dentre outros aspectos, o significado atribuído pelas crianças a diversos fenômenos de sua vida diária como – convivência com seus pares, violência, negligência, família, lazer, amigos, e, ainda, a visão contextual em especial nos ambientes escolares, de como as tramas que as circundam estão refletindo na aprendizagem e nas relações sociais de cada uma – buscando romper com a concepção dominante que vê os pequenos como “aqueles que não falam” para colocá-lo em um lugar com categoria de sujeito, e o principal sensibilizar as famílias a proporcionar esse espaço de fala que lhes é de direito dentro de seus lares.
A Lei da Escuta Protegida nº 13.431, sancionada em 2017 e que passou a vigorar em abril de 2018 em todo o país, dispõe que a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e de abuso sexual deverá seguir metodologia humanizada de entrevista. Olha? Um avanço. Mas, e antes disso? Meninos e meninas eram ouvidos em regular audiência criminal, quase sempre anos depois dos fatos, e tinham que depor várias vezes a diferentes órgãos. Portanto, não há necessidade de descrever aqui as inúmeras conseqüências nas vidas dessas pessoas em decorrência de tais situações. Assim, conforme preconiza a Lei citada, que o poder público garanta espaços adequados de escuta com locais apropriados e acolhedores, que garantam a privacidade e o direito à voz de crianças e adolescentes.
Diante do contexto histórico fragmentado que envolve a infância não é redundante afirmar que criança tem vez, tem voz, interessa, faz parte, existe, importa, é gente!
*Girlane Cabral Fernandes
é Pedagoga da Defensoria Pública do Estado do Tocantins em Palmas